Vladimir Putin fixou um olhar frio e de exasperação no comandante-chefe das forças armadas da Rússia, general Valery Gerasimov. O vídeo, divulgado na quarta-feira (7) pelo Kremlin, mostrou que o presidente russo não estava satisfeito com as notícias da região sul de Kursk.
Naquele momento, centenas de soldados ucranianos, apoiados por tanques e protegidos por defesas aéreas, avançavam na região. Soldados russos estavam se rendendo; centenas de civis russos na cidade de Sudzha e arredores estavam fugindo com o que conseguiam carregar.
Em dois anos e meio de guerra, essa foi uma incursão ucraniana sem precedentes em território russo. Putin disse, na reunião do Kremlin, que essa era “mais uma grande provocação” de Kiev.
O governador interino da região declarou estado de emergência, descrevendo a situação como “muito difícil”. Acima de tudo, foi uma humilhação para um estado russo que se orgulha de proteger a pátria.
O ataque em Kursk foi uma jogada ousada e contraintuitiva das Forças Armadas ucranianas, algo que um analista descreve como “fazer o menos óbvio”.
Apesar de perder terreno continuamente no leste de Donetsk, a Ucrânia escolheu enviar elementos de brigadas experientes para o território russo, com os objetivos aparentes de envergonhar o Kremlin, forçar o Ministério da Defesa da Rússia a redistribuir recursos e proporcionar um impulso moral muito necessário para a frente doméstica.
George Barros, do Instituto para o Estudo da Guerra, com sede em Washington, nos EUA, diz que os ucranianos “conseguiram uma surpresa operacional contra grandes adversidades e estão explorando atualmente a falta de prontidão da Rússia em suas áreas fronteiriças”.
A mesma tática funcionou em setembro de 2022, quando eles recuperaram grande parte da região ocupada de Kharkiv em uma semana.
O regimento russo encarregado de defender essa parte da fronteira abandonou suas posições. Várias dezenas de soldados foram capturados, levando o presidente Volodymyr Zelensky a expressar, na sexta-feira (9), “gratidão especial aos nossos guerreiros e unidades que estão reabastecendo o ‘fundo de trocas’ – capturando os ocupantes e, assim, ajudando a libertar nosso povo do cativeiro russo”.
Uma coluna de reforços russos foi destruída por um ataque de míssil perto da cidade de Rylsk na noite de quinta-feira (8), possivelmente porque os ucranianos conseguiram invadir várias câmeras de trânsito, que são uma característica das rodovias russas. O blogueiro russo, Aleksander Kots, disse que percorreu a rota.
“Notei que há câmeras funcionando ao longo de toda a rodovia. Elas estão literalmente piscando suas luzes”.
Encontrando pouca resistência e com as comunicações russas na região supostamente interrompidas por uma guerra eletrônica eficaz, as brigadas ucranianas avançaram mais de 20 quilômetros dentro de Kursk nos primeiros dois dias da operação.
Boas informações de inteligência permitiram que unidades avançadas se movessem ainda mais à frente em um campo de batalha um tanto caótico, muitas vezes contornando as defesas russas.
Na sexta-feira (9), as autoridades russas haviam perdido o controle de pelo menos 250 quilômetros quadrados de território, de acordo com várias análises independentes e o mapeamento da CNN.
Isso não era apenas um pedaço de campo vazio na Rússia. Entre os locais que ficaram sob controle ucraniano estava um centro de trânsito de gás natural perto da fronteira, por onde a Rússia fornece à Europa volumes substanciais de gás natural.
Na sexta-feira, um canal militar ucraniano no Telegram declarou a instalação “sob controle do 99º batalhão mecanizado da 61ª Brigada Mecanizada”, uma das unidades experientes envolvidas no ataque.
Um vídeo mostrou soldados em frente ao prédio, mas a Gazprom disse no sábado (10) que o gasoduto ainda estava operando.
Dentro da Rússia, o tipo de raiva que surgiu com os reveses no início da guerra foi reacendido. Andrey Gurulyov, ex-comandante da região, republicou um comentário no Telegram que exigia que promotores militares investigassem as decisões dos comandantes de transferir unidades da região de Kursk antes do ataque.
E houve ressentimento entre os civis russos na região, milhares dos quais fugiram de suas casas. O chefe da cidade de Rylsk – a alguma distância das unidades ucranianas mais avançadas – disse na sexta-feira que mais da metade da população de 15 mil pessoas havia partido. Vídeos nas redes sociais ilustraram a frustração entre os civis com a resposta lenta dos militares; alguns apelaram diretamente ao presidente Putin.
Uma força expedicionária
As tropas ucranianas, mesmo que reforçadas, não podem esperar ocupar vários quilômetros quadrados de território russo. Essa é, sem dúvida, uma força expedicionária, embora endurecida pela batalha, que explorou a ausência de resistência organizada para avançar rapidamente.
Mas manter uma grande parte do território russo está além de sua capacidade e provavelmente além de seu objetivo. Reforços russos eventualmente farão sua marca, mesmo que levem mais de três dias para começar uma defesa eficaz.
No sábado (10), o Ministério da Defesa da Rússia disse que unidades haviam “frustrado as tentativas dos grupos móveis inimigos de penetrar” no território russo perto de Ivashkovsky, Malaya Loknya e Olgovka, na região de Kursk.
Olgovka está a 20 quilômetros da fronteira. Também houve sinais de que os drones russos “Lancet” estavam começando a degradar os tanques ucranianos.
Emil Kastehelmi, do grupo Black Bird na Finlândia, que usa inteligência de fontes abertas para rastrear o conflito, diz que “o tempo está correndo contra os ucranianos – os russos não ficarão desorganizados para sempre”.
Mesmo que os ucranianos precisem recuar de posições mais avançadas, tal operação ainda serve a vários propósitos. Barros diz que “expõe algumas suposições de planejamento da Rússia e vulnerabilidades críticas”.
Matthew Schmidt, que ensinou planejamento estratégico e operacional no Colégio de Comando e Estado-Maior do Exército dos EUA, disse que o “uso criativo da força” pelos ucranianos foi projetado para pressionar os tomadores de decisão em Moscou – e possivelmente custar alguns de seus empregos.
O blogueiro militar russo Vladislav Shurygin cristalizou tudo isso em um post no Telegram na sexta-feira, dizendo que o inimigo havia “escolhido de forma muito habilidosa e precisa uma estratégia diferente – aproveitando a rigidez burocrática e a lentidão do sistema de gestão russo, para esgotar a Rússia com ataques contínuos e inesperados em infraestrutura sensível e na população civil, provocando descontentamento, decepção e apatia”.
A operação em Kursk também demonstra aos aliados da Ucrânia que o país ainda tem energia e imaginação para surpreender seu inimigo e envergonhar o Kremlin em um momento em que grande parte das notícias da linha de frente era desanimadora para Kiev.
Isso não passou despercebido por Shurygin. “O objetivo dessa nova estratégia é colocar a Rússia diante da perspectiva de uma guerra cada vez mais cara (financeira, reputacional e organizacionalmente) e forçá-la a negociar a paz até novembro-dezembro”.
Daniel Fried, do Atlantic Council, diz que há uma longa história de ataques militares surpresa – alguns sem consequência e outros impactantes. Ele lembra a manobra ousada de George Washington para cruzar o rio Delaware em 1776, quando ele voltou com prisioneiros capturados e suprimentos, elevando o moral para a luta contra os britânicos.
Fried, ex-secretário assistente de Estado dos EUA para a Europa, diz que, ao demonstrar o fracasso da inteligência russa e a fraqueza ao longo de sua fronteira, a incursão perfurou a narrativa do Kremlin “de que a resistência ucraniana é inútil e o apoio à Ucrânia é fútil”.
A jogada em Kursk por parte da Ucrânia força o Ministério da Defesa da Rússia a tomar algumas decisões difíceis. Parece que os grupos existentes em Kursk, como a Guarda Nacional, FSB e elementos irregulares, são incapazes de combater os ucranianos.
Barros disse à CNN que o comando militar pode redistribuir elementos do recentemente criado Agrupamento do Norte, mas a redistribuição de elementos significativos “provavelmente estenderia ainda mais esses elementos e criaria vulnerabilidades nas defesas russas em outras áreas ao longo da fronteira”.
Alternativamente, podem chamar as reservas substanciais da Rússia em uma operação de maior escala – mas essas são críticas para as atuais operações ofensivas russas dentro da Ucrânia, onde o compromisso contínuo de um grande número de tropas tem erodido as defesas ucranianas.
Ou, segundo Barros, os russos podem recorrer à aviação para atacar o armamento ucraniano dentro de Kursk, impedindo assim que as forças ucranianas consolidem posições e auxiliando as forças russas atualmente posicionadas na área.
Qualquer que seja a combinação que os russos escolham, eles estão tentando reverter um episódio humilhante no conflito, justo quando a superioridade numérica e aérea no leste de Donetsk começava a entregar progressos incrementais, sustentando a insistência do Kremlin de que a Ucrânia ceda quatro regiões orientais como condição para as negociações.
“Os eventos em desenvolvimento demonstram até que ponto Moscou tem dependido profundamente do santuário no território russo para travar sua guerra contra a Ucrânia”, disse Barros à CNN. “A Rússia tem subestimado suas fronteiras e fortificações fronteiriças, confiando em sua percepção de segurança porque não se sentia vulnerável”.
Ao longo de uma fronteira sul com a Ucrânia que tem centenas de quilômetros de extensão, essa percepção foi seriamente e inesperadamente desafiada.
*Com informações de Darya Tarasova e Maria Kostenko, da CNN.
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