Ao olhar para cima enquanto passeia por partes do centro de Hong Kong, há grandes chances de você notar a lente preta e brilhante de uma câmera de vigilância focada nas ruas lotadas da cidade.
E essa visão se tornará mais comum nos próximos anos, à medida que a polícia da cidade busca uma campanha ambiciosa para instalar milhares de câmeras e aumentar suas capacidades de vigilância.
Embora consistentemente classificada entre as grandes cidades mais seguras do mundo, a polícia no centro financeiro asiático afirma que as novas câmeras são necessárias para combater o crime – e levantaram a possibilidade de equipá-las com ferramentas poderosas de reconhecimento facial e inteligência artificial.
E gerou alarme entre alguns especialistas, que veem isso como mais um passo que Hong Kong está dando em direção aos sistemas de vigilância abrangentes da China continental, alertando sobre o potencial repressivo dessa tecnologia.
A polícia de Hong Kong já havia estabelecido a meta de instalar 2 mil novas câmeras de vigilância este ano e, possivelmente, mais do que isso a cada ano subsequente. A força planeja eventualmente introduzir o reconhecimento facial nessas câmeras, disse o chefe de segurança Chris Tang à mídia local em julho – acrescentando que a polícia poderia usar inteligência artificial (IA) no futuro para rastrear suspeitos.
Em nota à CNN, a Polícia de Hong Kong disse que estava estudando como as polícias de outros países utilizam câmeras de vigilância, inclusive com o uso de IA. No entanto, não está claro quantas das novas câmeras podem ter capacidade de reconhecimento facial ou se há um cronograma para quando a tecnologia será introduzida.
Tang e a polícia de Hong Kong apontaram repetidamente para outras jurisdições, incluindo democracias ocidentais, que também fazem uso generalizado de câmeras de vigilância para a aplicação da lei. Por exemplo, Singapura tem 90 mil câmeras e o Reino Unido tem mais de sete milhões, disse Tang ao jornal local Sing Tao Daily em junho.
Embora alguns desses lugares, como o Reino Unido, já tenham começado a usar câmeras de reconhecimento facial, especialistas dizem que essas primeiras experiências destacaram a necessidade de regulamentação cuidadosa e proteções de privacidade. A polícia de Hong Kong disse à CNN que “cumprirá as leis relevantes” e seguirá diretrizes internas rigorosas – mas não detalhou como isso funcionaria.
E, segundo alguns críticos, o que diferencia Hong Kong de outros lugares é o seu ambiente político – que tem visto uma repressão contínua à dissidência política, à medida que se aproxima da China continental autoritária.
Após os protestos antigovernamentais sem precedentes e muitas vezes violentos que abalaram a cidade em 2019, as autoridades locais e centrais impuseram amplas leis de segurança nacional que têm sido usadas para prender ativistas, jornalistas e opositores políticos, além de visar grupos da sociedade civil e meios de comunicação independentes.
Os líderes de Hong Kong disseram que as leis são necessárias para restaurar a estabilidade após os protestos na cidade nominalmente semiautônoma e argumentam que sua legislação é semelhante a outras leis de segurança nacional ao redor do mundo.
“A diferença está em como a tecnologia está sendo usada”, disse Samantha Hoffman, pesquisadora não-residente do National Bureau of Asian Research, que estuda o uso da tecnologia pela China para segurança e propaganda.
Países como os Estados Unidos e o Reino Unido também podem ter problemas com a forma como implementam essa tecnologia – mas “isso é fundamentalmente diferente. Tem a ver especificamente com o sistema de governo, bem como a forma como o Estado partidário usa a lei para manter seu próprio poder”, disse Hoffman.
O que isso significa para Hong Kong
Hong Kong tem mais de 54.500 câmeras públicas de CCTV usadas por órgãos governamentais – cerca de sete câmeras por 1 mil pessoas, segundo uma estimativa da Comparitech, uma empresa de pesquisa tecnológica sediada no Reino Unido.
Isso a coloca mais ou menos no mesmo nível de Nova York, ainda muito atrás de Londres (13 por 1 mil pessoas), mas longe das cidades chinesas continentais, que têm em média cerca de 440 câmeras por 1 mil pessoas.
Os temores de vigilância e policiamento ao estilo continental causaram uma grande preocupação durante os protestos de 2019, que se ampliaram para abranger os temores de muitos moradores de Hong Kong de que o governo central chinês invadisse a autonomia limitada da cidade.
Os manifestantes nas ruas cobriam seus rostos com máscaras e óculos para evitar a identificação, às vezes quebrando ou cobrindo câmeras de segurança. Em um ponto, eles derrubaram um poste de luz “inteligente”, embora as autoridades de Hong Kong tenham dito que ele servia apenas para coletar dados sobre tráfego, clima e poluição.
Na época, o ativista e líder estudantil Joshua Wong – que agora está preso por acusações relacionadas ao seu ativismo e segurança nacional – disse: “O governo de Hong Kong pode garantir que nunca instalará táticas de reconhecimento facial no poste de luz inteligente? Eles não podem prometer e não prometerão por causa da pressão de Pequim”.
Do outro lado da fronteira, o modelo de vigilância que os manifestantes temiam é onipresente – com a China celebrando frequentemente as várias conquistas de seus algoritmos de reconhecimento facial em tempo real e exportando tecnologia de vigilância para países ao redor do mundo.
De acordo com uma análise da Comparitec, oito das 10 cidades mais vigiadas do mundo per capita estão na China, onde o reconhecimento facial é uma parte inescapável da vida cotidiana – desde as varreduras faciais necessárias para registrar um novo número de telefone, até os portões de reconhecimento facial em algumas estações de metrô.
Durante a pandemia de Covid-19, o governo exigiu um “código de saúde” QR para rastrear o status de saúde das pessoas, que em alguns lugares exigia verificações faciais. Mas a tecnologia também tem sido usada de maneiras mais repressivas.
Na região oeste de Xinjiang, Pequim usou câmeras para monitorar membros da população Uigur, majoritariamente muçulmana. E quando protestos nacionais sem precedentes surgiram no final de 2022 contra as rigorosas políticas de Covid do governo, a polícia usou o reconhecimento facial junto com outras ferramentas de vigilância sofisticadas para rastrear os manifestantes, segundo o The New York Times.
“Os sistemas de vigilância pública de segurança da China tendem a rastrear listas de pessoas específicas, talvez pessoas com histórico de doenças mentais ou participação em protestos, e fazem uma anotação de pessoas marcadas como problemáticas de alguma forma”, disse Hoffman.
Os sistemas então “rastreiam essas pessoas específicas pela cidade e por sua rede de vigilância”.
“Acho que é justo antecipar que o uso de câmeras de vigilância e tecnologia de reconhecimento facial em Hong Kong começará a se assemelhar muito ao que acontece na China continental ao longo do tempo”, disse ela.
A polícia de Hong Kong argumenta que as câmeras ajudam a combater o crime, apontando para um programa piloto no início deste ano com 15 câmeras instaladas em um distrito. Essas câmeras já forneceram evidências e pistas para pelo menos seis crimes, disse Tang ao Sing Tao Daily – e a polícia priorizará áreas de alto risco ou alta criminalidade para as câmeras restantes.
Os primeiros cinco meses deste ano registraram 3% mais crimes do que o mesmo período do ano passado, informou o Sing Tao.
Em nota, a polícia disse à CNN que as novas câmeras monitorariam apenas locais públicos e deletariam as imagens após 31 dias. Elas seguirão as leis existentes de privacidade de dados pessoais, bem como “diretrizes internas abrangentes e robustas”, disse a polícia, sem detalhar quais eram essas diretrizes.
Ao considerar câmeras equipadas com IA, “a polícia definitivamente cumprirá as leis relevantes”, acrescentou a força.
Mas vários especialistas entrevistados pela CNN duvidaram se essas leis existentes, escritas há décadas com amplas isenções para a polícia, serão suficientes.
Steve Tsang, diretor do Instituto da China da SOAS na Universidade de Londres, alertou que as novas câmeras poderiam ser “usadas para repressão política” se forem empregadas sob a “draconiana” lei de segurança nacional.
A menos que as autoridades assegurem ao público que as câmeras não serão usadas para esse propósito, “isso provavelmente será mais um passo em tornar a aplicação da lei em Hong Kong mais parecida com o que é feito na China continental”, disse ele.
Como regular o reconhecimento facial
Outros especialistas argumentaram que é muito cedo para dizer qual será o impacto em Hong Kong, já que as autoridades ainda não detalharam como usariam a tecnologia.
“A lei de Hong Kong não espelha, em todas as medidas, o que acontece na China continental”, disse Normann Witzleb, professor associado de proteção de dados e privacidade da Universidade Chinesa de Hong Kong.
Mas é por isso que é ainda mais importante que as autoridades abordem uma série de perguntas ainda sem resposta, disse ele.
Por exemplo, ainda não está claro se Hong Kong implantará o reconhecimento facial ao vivo que constantemente escaneia o ambiente ou se a tecnologia será aplicada apenas a imagens passadas quando certos crimes ocorrerem ou quando houver autorização legal.
Witzleb também levantou a questão de quem teria o poder de autorizar o uso do reconhecimento facial e quais situações justificariam isso. Seria usado para processar crimes e localizar suspeitos, por exemplo – ou para outras medidas de segurança pública, como identificar pessoas desaparecidas?
E, acrescentou Witzleb, a polícia executaria a tecnologia por meio de seus bancos de dados de imagens existentes ou a usaria de maneira mais ampla com imagens detidas por outras autoridades públicas ou até mesmo imagens disponíveis publicamente de qualquer pessoa?
“É importante projetar diretrizes para esses sistemas que reconheçam adequadamente os benefícios potenciais que eles têm, mas que também reconheçam que não são infalíveis e que têm o potencial de interferir com os direitos (das pessoas) de maneiras graves”, disse Witzleb.
Independentemente de como o reconhecimento facial possa ser usado, tanto Hoffman quanto Witzleb disseram que a presença dessa tecnologia e o aumento do número de câmeras de segurança podem fazer com que os moradores de Hong Kong se sintam menos livres sob o olhar constante da polícia.
“Quando você sente que está sendo monitorado, isso afeta seu comportamento e seus sentimentos de liberdade também”, disse Hoffman. “Acho que há um elemento de coerção estatal que não precisa estar necessariamente relacionado à eficácia da tecnologia em si”.