Incursão de Kiev na Rússia mostra a aliados que Ucrânia pode vencer a guerra


A ousada incursão da Ucrânia na região russa de Kursk foi um triunfo para sua inteligência militar e agilidade tática – e igualmente um sinal de que, apesar de sua vantagem em termos de homens e blindados, o exército russo tem muitas vulnerabilidades.

Mais importante ainda, também enviou uma mensagem política aos aliados de Kiev que mudou a narrativa predominante da guerra – de que as forças ucranianas estão condenadas a travar uma ação interminável de retaguarda contra o poder de fogo superior da Rússia.

De repente, a insistência repetida de Moscou de que todos os objetivos do que o presidente Vladimir Putin ainda chama de “operação militar especial” serão alcançados soa vazia. As forças ucranianas afirmam ter tomado quase tanto território na Rússia este mês (cerca de 1.200 quilômetros quadrados, segundo suas próprias estimativas) quanto os russos conquistaram dentro da Ucrânia durante o ano todo.

Moscou tem enfrentado reveses desde que lançou sua invasão em 2022, que foi planejada para capturar Kiev em menos de uma semana. Mas os objetivos – e os métodos para persegui-los – não mudaram. O bombardeio massivo acompanhado pelo uso custoso de infantaria tem gradualmente corroído o território ucraniano.

Uma análise do Instituto para o Estudo da Guerra, um think tank com sede em Washington, afirmou que “Putin provavelmente avalia que, enquanto a Rússia puder manter a iniciativa e impedir a Ucrânia de realizar operações contraofensivas significativas, a Rússia pode infligir perdas decisivas à Ucrânia a longo prazo, enquanto supera a assistência de segurança ocidental à Ucrânia e os esforços ucranianos para mobilizar mais da economia e da população da Ucrânia para o esforço de guerra”.

Mathieu Boulegue, pesquisador sênior do Centro de Análise de Políticas Europeias, concordou que “se você observar a grande estratégia de cada país, talvez não tenha mudado muito”. “Mas pela primeira vez em muitos meses esta operação forçou uma narrativa diferente no Kremlin, as primeiras rachaduras na narrativa de Putin”, disse Boulegue à CNN.

Mudando o rumo da guerra

O exército ucraniano desafiou um consenso crescente entre os apoiadores da Ucrânia de que havia pouca chance de recuperar muito – se é que algum – de seu próprio território. Na visão de Kiev, Kursk demonstra que seu exército merece um apoio contínuo, mais rápido e melhor de seus aliados porque pode mudar o rumo da guerra.

O presidente Volodymyr Zelensky fez esse ponto em um discurso na semana passada: “Nós já ampliamos e continuaremos a ampliar o círculo daqueles que apoiam um fim justo para esta guerra. É essencial que a Ucrânia entre neste outono ainda mais forte do que antes”.

Mick Ryan, ex-general na Austrália e autor do blog Futura Doctrina, disse que Kursk “demonstrou o aprendizado e a adaptação ucraniana após o fracasso de sua contraofensiva de 2023”, referindo-se ao ataque muito aguardado que trouxe poucos ganhos para Kiev.

Prédio de apartamentos atingido por destroços de míssil ucraniano, em Kursk, segundo autoridades locais • 11/08/2024 Prefeito de Kursk via Telegram/Divulgação via REUTERS

“O objetivo ucraniano aqui é demonstrar que a vitória russa não é inevitável, e que a Ucrânia pode lutar e vencer”, acrescentou Ryan – persuadindo os céticos a manter o apoio e, talvez mais importante, a relaxar ainda mais as restrições sobre como e onde suas armas podem ser usadas.

Os ucranianos têm persistido em superar a hesitação entre os aliados sobre o fornecimento de sistemas que possam escalar o conflito – primeiro com artilharia e tanques de batalha, depois com caças F16 e mísseis de longo alcance como HIMARS e ATACMs.

Até maio, o uso de armas americanas para atacar o solo russo era uma linha vermelha para uma administração Biden, apreensiva com a escalada. Então veio a incursão da Rússia na região de Kharkiv, auxiliada por ataques de longo alcance a partir do interior do território russo. Os ucranianos estavam, de fato, lutando com uma mão amarrada nas costas; a cidade de Kharkiv estava vulnerável.

A proibição foi relaxada, permitindo que alguns sistemas dos EUA atacassem o território russo. Em Kursk, os ucranianos a erodiram ainda mais ao usar blindados dentro da Rússia. Veículos blindados e tanques fornecidos pelos EUA, Alemanha e Reino Unido foram vistos atravessando o interior russo; mísseis ocidentais derrubaram pontes que poderiam de outra forma facilitar a defesa russa.

Zelensky disse que o blefe da Rússia foi desmascarado. “Todo o conceito ingênuo e ilusório das chamadas linhas vermelhas em relação à Rússia, que prevaleceu nas avaliações da guerra de alguns de nossos parceiros, desmoronou nesses dias em algum lugar perto de Sudzha”, disse ele.

“A Ucrânia demonstrou, mais uma vez, que as várias linhas vermelhas projetadas pelo presidente russo não passam de uma quimera destinada a reforçar a timidez política ocidental sobre a tomada de decisões na guerra”, disse Ryan.

Um prédio pega fogo na cidade russa de Sudzha após a incursão da Ucrânia na região de Kursk, em 7 de agosto • Mic Izvestia/IZ.RU/Reuters via CNN Newsource

Boulegue argumentou que a operação em Kursk é uma maneira valiosa para os aliados da Ucrânia “testarem o limiar de dor de Putin, uma maneira muito boa de testar outras formas de dissuasão da Rússia usando um proxy”. “As linhas vermelhas russas são fluidas, e este é outro caso de aumento gradual da temperatura”.

Os ucranianos venceram um importante argumento político aqui: não houve objeções públicas das capitais ocidentais à abertura dessa nova frente, e de fato houve elogios de muitos membros da Otan, incluindo Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos.

“À medida que veem ataques cruzando a fronteira, eles precisam ser capazes de ter as capacidades para responder”, disse a porta-voz do Pentágono, Sabrina Singh, a repórteres no início deste mês.

O principal diplomata da União Europeia, Josep Borrell, foi além, dizendo no X na quarta-feira (21):

“Levantar restrições ao uso de capacidades contra as forças militares russas envolvidas na agressão contra a Ucrânia, de acordo com o direito internacional, teria vários efeitos importantes: Fortalecer a autodefesa ucraniana ao acabar com o santuário da Rússia para seus ataques e bombardeios contra cidades e infraestruturas ucranianas. Salvar vidas e reduzir a destruição na Ucrânia. Ajudar a avançar os esforços de paz”.

Mas há um limite para o nível de conforto do Ocidente. A Ucrânia gostaria de atacar aeródromos no interior da Rússia com mísseis ATACM de longo alcance; Washington não parece inclinado a concordar.

Zelensky contrapôs que “Se nossos parceiros levantassem todas as restrições existentes ao uso de tais armas no território russo, então não precisaríamos entrar fisicamente na região de Kursk com o objetivo de proteger nossos cidadãos ucranianos nas regiões fronteiriças e destruir o potencial de agressão russo”.

Mas tomar território russo melhora a posição de negociação da Ucrânia em qualquer negociação, e também funciona como uma salvaguarda caso o ex-presidente Donald Trump vença as eleições nos EUA e busque impor um acordo de paz à Ucrânia.

Uma visão de drone mostra fumaça subindo após um dos ataques que as Forças Especiais da Ucrânia dizem serem em travessias de pontes sobre o rio Seym, perto de Glushkovo, região de Kursk, Rússia • Forças Especiais da Ucrânia/Divulgação

Estilo ocidental de combate

O sucesso da incursão em Kursk não se deve apenas ao hardware ocidental: a coleta de inteligência, planejamento e forças especiais ucranianas executaram a operação, juntamente com muitos drones, artilharia, guerra eletrônica e até armas termobáricas de fabricação ucraniana.

Isso “destaca a agência da Ucrânia, minando assim a representação russa do conflito como uma guerra por procuração com o Ocidente”, observou Olga Tatariuk, do Chatham House.

Isso também oferece aos aliados a tranquilidade de que os ucranianos não estão condenados a estar sempre na defensiva; que eles estão aprendendo o estilo ocidental de combate após as grandes esperanças para a contraofensiva de 2023 terem sido frustradas.

Como um soldado ucraniano em Kursk descreveu: “Esta operação foi muito bem planejada. Eu não sei quem trabalhou no plano, mas eles fizeram um bom trabalho. Estávamos nos movendo no centro, tínhamos suporte à esquerda e à direita de nós. Ótima operação”.

A operação em Kursk continua sendo uma aposta de alto risco para a Ucrânia, em um momento em que as forças russas estão se aproximando de dois importantes centros no leste de Donetsk: as cidades de Pokrovsk e Toretsk. Mas as forças ucranianas mostraram que o conflito não é uma via de mão única.

“Ainda não sabemos se isso será uma nota de rodapé ou um divisor de águas”, disse o analista Boulegue. Para os ucranianos, sustentar a operação à medida que a Rússia traz mais artilharia e aviação se tornará cada vez mais difícil.

Mas a cada dia que passa em que as forças ucranianas controlam uma área do território russo do tamanho de Hong Kong, a incursão em Kursk se torna menos uma nota de rodapé.



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