Família com “40 bichos“ permanece acampada em estrada quatro meses após enchente no RS


Há dois meses, uma ponte se tornou o teto da família de Milton do Nascimento. Expulso de casa pela enchente que inundou o Rio Grande do Sul no início de maio, o homem de 58 anos improvisou, com a esposa e a enteada, uma moradia sob o concreto da estrutura, no entroncamento das BRs 116 e 290, em Porto Alegre.

O abrigo à sombra da ponte fica a apenas 300 metros da residência de Milton, onde a água subiu até a altura de dois metros, levantou o piso, derrubou o telhado e despejou um amontoado de entulhos. Mesmo com a casa ainda inabitável e sem perspectivas de retorno, a família resiste em deixar as margens da estrada e se mudar para um local mais seguro.

Segundo o mais recente mapeamento da prefeitura da capital gaúcha, 12 famílias, que somam 40 pessoas, permanecem morando, quatro meses após os alagamentos, às margens da rodovia na região das ilhas.

O número tem recuado gradualmente — no pico da enchente, a estrada lembrava um campo de refugiados, com dezenas de barracas enfileiradas no acostamento —, mas sintetiza um impasse que o poder público ainda não conseguiu solucionar.

Os atuais habitantes da estrada se recusam a desocupá-la, apesar da disponibilidade de vagas em um centro humanitário inaugurado pelo governo estadual na cidade e do recebimento de benefícios sociais, pelos mais variados motivos, como medo de saques na residência afetada e cansaço da rotina nos abrigos temporários.

Já no caso de Milton, a permanência se dá pelos numerosos animais mantidos pela família e a impossibilidade de alocá-los em um alojamento urbano — ao todo, são mais de 40 bichos.

Milton e a esposa, Gabriela de Freitas, de 28 anos, construíram, com madeira e lonas doadas por voluntários, uma cocheira para suas 24 cabras e um chiqueiro para os três porcos que criam no canteiro dos pilares da ponte. Também mantêm amarrados no terreno dois javaporcos, cinco cavalos e pelo menos dez cachorros.

“Se não fossem os bichos, eu já tinha dado um jeito de ter ido para outro lugar. Mas o que me sobrou foram eles. As coisas materiais eu arrumo de novo; meus animais, não”, disse Milton à Reuters.

O casal decidiu se instalar debaixo da ponte para se proteger da chuva, do frio e dos carros no início de julho, depois de dois meses morando em sua caminhonete no acostamento da BR. Usaram um dos pilares da estrutura como parede e o cercaram com cobertores, placas de isolamento térmico e filme PVC, que permite a entrada de luz natural.

Mobiliaram a área interna com itens também doados — uma geladeira sem motor, usada como armário para armazenar comida devido aos ratos, sofá e mesa, além de fogão, tanquinho e TV, ligados com a energia elétrica de uma rede vizinha. Milton e Gabriela ainda ergueram um mezanino com estacas de madeira, que acessam por uma pequena escada, onde a família dorme em colchões e armazena suas roupas.

A passagem de veículos, sobretudo de ônibus e caminhões, na pista acima da moradia temporária causa estrondos e tremores frequentes.

“Treme tanto que, de noite, eu chego a cair do colchão”, contou à Reuters a mãe de Milton, Iauria do Nascimento, de 80 anos, que se juntou a eles há pouco mais de um mês.

O dia a dia da família tem ares de normalidade apesar das condições adversas. O casal ocupa boa parte da rotina com a lida dos animais. Milton mantém seu trabalho informal de frete quando há demanda, e Gabriela estuda à noite em uma unidade de Educação de Jovens e Adultos. A sua filha, Natália da Silva, de 10 anos, frequenta à tarde o 5º ano em uma escola localizada em frente ao acampamento. No final do dia, costumam se reunir para assistir a uma novela.

A parte mais crítica, contam, é a higiene pessoal. O banheiro funciona em uma barraca vizinha à ponte, abandonada por uma família que retornou para casa, onde tomam banho com baldes. O município tem abastecido os moradores regularmente, enchendo as caixas d’água armazenadas no local.

“Depois de passar o que a gente passou ali em cima (da rodovia), isso aqui não é nada. Agora, a gente está no luxo. Eu tenho tudo: comida para comer, cama para dormir e fogão para cozinhar. Claro, a gente queria tomar um banho de chuveiro. Mas essa é a situação que a gente tem no momento”, disse Gabriela.

Realocação

Os acampamentos na rodovia pautaram, no mês passado, uma reunião entre representantes do governo gaúcho e da prefeitura de Porto Alegre. O Estado orientou que o município ofereça as vagas disponíveis em um centro de acolhimento montado na cidade para as famílias que seguem na estrada, e a prefeitura disse que monitora a situação com incursões frequentes.

“Eles têm uma resistência grande em sair daquele espaço, por mais precário e inseguro que seja. Temos tentado, com diálogo, convencer as pessoas e oferecer um abrigo adequado. Não passa pela prefeitura, nem é nosso papel, a ideia de retirar aquelas pessoas de maneira coercitiva”, afirmou o adjunto da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, Lucas Vasconcellos.

A permanência das famílias na BR reflete, também, a dificuldade em alocar de maneira definitiva os moradores que tiveram suas residências destruídas pela enxurrada. O Estado e os municípios gaúchos têm reclamado de atraso na entrega de moradias prometidas pela União, enquanto o governo federal diz que as prefeituras têm demorado em cadastrar as vítimas.

A alegada lentidão na resposta aos danos causados pela enchente foi motivo de embate recente entre o governador do Estado, Eduardo Leite (PSDB), e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando ele esteve no Rio Grande do Sul para entregar as primeiras 44 casas a pessoas que perderam suas moradias.

O governo federal anunciou a compra assistida de 10.000 residências prontas, via Caixa Econômica Federal, e a construção de 11.500 unidades no programa Minha Casa Minha Vida no Rio Grande do Sul. Já o estadual planeja erguer 500 moradias provisórias, com 30 entregues até o momento, e 300 definitivas.

Com renda oriunda do Bolsa Família e de trabalhos informais, a família de Milton se enquadra nos critérios da assistência habitacional do governo federal. Segundo ele, uma equipe da prefeitura esteve em sua casa para fazer um laudo técnico — um dos requisitos para ser cadastrado e receber uma casa nova —, mas ainda não houve retorno.

“O cidadão não está querendo saber de laudos ou cadastros, ele quer saber da casa dele. Temos o dever de mostrar essa angústia para o presidente e seus ministros”, disse o vice-governador gaúcho, Gabriel Souza (MDB).

O secretário-executivo da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Maneco Hassen, reforçou que o ritmo de entregas de residências depende do encaminhamento, pelas prefeituras, das listas de moradores com a comprovação de que suas casas ficaram inabitáveis.

“Não temos como dar uma casa para alguém se não temos minimamente os dados daquela família e sem ter a certeza de que a casa daquela pessoa foi efetivamente destruída; senão, vira um programa sem-fim. As prefeituras precisam fazer a sua parte. E é claro, também, que construir casas não é do dia para a noite”, afirmou Hassen.



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