Donald Trump parece ter mostrado certa surpresa pela situação volátil do cenário internacional que ele herdará como o novo presidente dos Estados Unidos com o avanço dos rebeldes na Síria e eventual queda do regime de Bashar al-Assad neste final de semana.
“Certamente parece que o mundo está ficando um pouco louco agora“, disse o presidente eleito no sábado (7) quando se encontrou com o presidente da França, Emmanuel Macron, em Paris.
A queda impressionante da dinastia Assad na Síria no domingo (8) criou circunstâncias novas e traiçoeiras que exigirão a atenção de Trump e provavelmente fornecerão um teste imediato de seus objetivos e perspicácia de política externa em janeiro — apesar de seu desejo de desligar os Estados Unidos das zonas de guerra do Oriente Médio.
“Esta não é nossa luta. Deixe acontecer. Não se envolva”, escreveu Trump no sábado na Truth Social, em letras maiúsculas, enquanto os rebeldes iam em direção à capital síria, Damasco.
Seu comentário parece ir contra quase duas décadas de guerras dos EUA no Oriente Médio e no Sul da Ásia, mas como uma potência global, com uma economia mundial integrada e com inimigos buscando diluir a influência americana, também pode chegar um momento em que Trump não tenha escolha a não ser se envolver, diplomaticamente, se não militarmente nesses conflitos.
“Quando se tornar um interesse de segurança nacional e uma ameaça aos Estados Unidos, então nos envolveríamos”, disse o senador republicano Markwayne Mullin, um importante aliado de Trump, à CNN no domingo.
E a repentina reorganização da geopolítica do Oriente Médio pode oferecer aberturas para outros objetivos internacionais de Trump, incluindo a renovação do confronto com o Irã.
Em suas postagens nas redes sociais no fim de semana, o presidente eleito dos Estados Unidos também destacou como a queda do presidente Bashar al-Assad foi uma derrota para a Rússia e pressionou o presidente Vladimir Putin a reduzir suas perdas encerrando a guerra na Ucrânia.
Mas as políticas do primeiro mandato de Trump e seus planos para seu segundo mandato — incluindo aqueles expostos em sua primeira grande entrevista na TV desde a eleição, que foi gravada na sexta-feira (6), antes da deposição de Assad — mostram que ele vê o mundo e suas crises através de um prisma de vitória-derrota para os Estados Unidos.
Na ampla entrevista com Kristen Welker, no “Meet the Press” da NBC, que foi ao ar no domingo, ele afirmou se que a Ucrânia deveria “provavelmente” se preparar para menos ajuda com ele no poder e se comprometeria a permanecer na Otan, a aliança militar ocidental, somente se outros integrantes do bloco pagassem o valor alocado para eles e “nos tratem de forma justa”.
Trump também ressaltou a ideia de “América Primeiro”, um de seus slogans de campnha, ao destacar planos de priorizar a deportação em massa de imigrantes com antecedentes criminais e acabar com a cidadania por direito de nascença.
Trump enfrentará rede entrelaçada de adversários dos EUA
Mas Donald Trump tem desafios difíceis na Síria e além.
A tomada de poder no país liderada por um grupo rebelde que os EUA consideram uma organização terrorista que já foi afiliada à Al Qaeda levanta dúvidas sobre se a Síria pode se tornar novamente um refúgio terrorista.
Trump pode ter que decidir rapidamente se mantém a implantação de centenas de tropas americanas na Síria para combater qualquer ressurgimento do Estado Islâmico.
Enquanto isso, o presidente Joe Biden ordenou ataques dos EUA contra alvos do Estado Islâmico no país no domingo.
Além disso, a queda de Assad está intrinsecamente ligada a outras prioridades da política externa dos Estados Unidos — incluindo, como Trump observou, a Rússia, que apoiou o governo do presidente sírio.
A queda de Bashar al-Assad também é um golpe sério para o Irã, depois que as guerras de Israel no Líbano contra o Hezbollah e em Gaza contra o Hamas impactaram grupos apoiados pela República Islâmica e deixaram a liderança em Teerã parecendo mais vulnerável.
Isso enquanto o Irã se prepara para um período conturbado envolvendo a sucessão iminente de seu líder supremo, dada a idade avançada do aiatolá Ali Khamenei.
Assim, as percepções de que o país está enfraquecido podem levar a uma linha ainda mais dura do que já é esperada do governo Trump, à medida que o regime iraniano aumenta seu estoque de urânio quase em nível para armas.
Tendo esses pontos em mente, entede-se que os desafios de política externa para Donald Trump se estendem da Síria, Líbano, Israel e Iêmen no Oriente Médio e passam pela Europa, enraizados na guerra na Ucrânia e suas crises tributárias.
O conflito no território ucraniano se tornou global com o uso de tropas terrestres da Coreia do Norte.
Se a Rússia, como alguns especialistas suspeitam, estiver fornecendo ao governo norte-coreano informações ou tecnologia de mísseis balísticos em troca, o impasse dos EUA com Pyongyang pode se tornar ainda mais perigoso.
O Irã também forneceu drones e mísseis à Rússia, de acordo com autoridades dos EUA.
E os problemas dos Estados Unidos com a Rússia, Coreia do Norte e Irã são agravados pela sinergia estratégica frouxa, mas crescente, entre os três países e a China.
Muitos dos principais funcionários e apoiadores do novo governo Trump argumentaram anteriormente que os EUA precisam “se desligar” de lugares como Oriente Médio e Europa para direcionar recursos militares e financeiros para o que eles veem como um confronto existencial com a superpotência da Ásia.
Entretanto, as realidades geopolíticas em rápida mudança significam que os adversários dos Estados Unidos provavelmente não darão a opção ao presidente eleito.
Este é um mundo muito mais complexo e potencialmente perigoso do que aquele com o qual Trump estava familiarizado durante seu primeiro mandato.
O mundo via pronunciamentos e repreensões imprevisíveis aos aliados dos EUA de Donald Trump — como aqueles na Europa e na Ásia, muitos dos quais agora estão enfraquecidos por sua própria turbulência doméstica.
Esses aliados também estão se preparando para as demandas do repubicano por maiores gastos com defesa, algo que muitos podem ter dificuldade para satisfazer devido às suas situações econômicas.
Biden lidera resposta dos EUA, mas mundo olha para Trump
Até 20 de janeiro de 2025, a Rússia não é oficialmente problema de Donald Trump, mesmo que suas declarações de política externa consideradas agressivas por alguns, ameaças tarifárias e a viagem a Paris para a reabertura da Catedral de Notre-Dame neste fim de semana tenham feito parecer que ele já está no comando dos EUA.
Joe Biden reagiu à queda de Bashar al-Assad dizendo que isso traz Justiça para o povo sírio. Também prometeu evitar que qualquer instabilidade no país se espalhasse pela região.
O presidente americano também dstacou que trabalhará com a ONU para fazer a transição para uma Síria independente e soberana com uma nova Constituição e um novo governo.
Por fim, anunciou os ataques aéreos de bombardeiros B-52, caças F-15 e aeronaves A-10 contra alvos do Estado Islâmico na parte central da Síria.
Mas ele logo entregará o poder a Trump.
“Acho que os EUA estão em conflito. Por um lado, eles estão basicamente se gabando do fato de que basicamente isso é um… grande revés para a Rússia e o Irã”, avaliou Fawaz Gerges, professor de Relações Internacionais na London School of Economics, Becky Anderson, da CNN.
“Por outro lado, os americanos sabem muito bem que a Síria pode realmente ir… para o caminho errado. E a Síria governada por um movimento islâmico salafista não é realmente a preferência americana para o país”, ponderou.
Uma semana atrás, ninguém teria previsto o fim do regime de 50 anos da Síria, que foi comandado por Bashar al-Assad e o pai dele, o falecido presidente Hafez al-Assad.
A velocidade com que o regime caiu significa que é impossível prever a situação que Donald Trump herdará no mês que vem.
O perigo é que uma nação profundamente dividida étnica e religiosamente se fragmente ainda mais, que uma guerra civil sangrenta irrompa novamente e que refugiados se desloquem em grupos para Estados vizinhos e causem uma nova crise humanitária.
E mesmo que o grupo dominante na coalizão rebelde, o Hayat Tahrir Al-Sham (HTS), assuma o controle e traga paz, a economia síria está muito debilitada, cidades e serviços públicos estão arruinados, e o retorno de refugiados que fugiram nos últimos anos pode gerar enorme instabilidade.
Então, enquanto Trump considera a atual implantação de tropas dos EUA na Síria, ele também deve decidir o quão profundamente ele se envolverá no futuro do país — e se não o fizer, se ele está disposto a deixar os adversários preencherem o vácuo e construírem seu próprio poder.
Não há ganho monetário óbvio para os EUA na Síria, e a visão tradicional da maioria dos presidentes de que o país deve promover a estabilidade é entra em conflito com a ideia de “América Primeiro”, um dos slogans da campanha do republicano.
Ainda assim, a queda de Assad pode ajudar a aumentar a segurança de Israel, o que é importante para Trump. Um país unificado e estável pode bloquear o envio de armas do Irã através da Síria para ajudar no reerguimento do Hezbollah no Líbano.
Trump usa queda de Assad para pressionar Putin
Donald Trump mostrou que vê com bons olhos o que a queda de Assad no domingo pode implicar em um cenário mais amplo.
Com isso, ele colocou pressão sobre Putin para negociar o fim da guerra na Ucrânia, mesmo que tenha minimizado o quão difícil isso pode ser.
“A Rússia e o Irã estão em um estado enfraquecido agora, um por causa da Ucrânia e uma economia ruim, o outro por causa de Israel e seu sucesso na luta”, escreveu Trump.
“Da mesma forma, [Volodymyr] Zelensky e a Ucrânia gostariam de fazer um acordo e parar com a loucura [da guerra]”, adicionou o republicano um dia após se encontrar com o presidente ucraniano em Paris.
“Muitas vidas estão sendo desperdiçadas desnecessariamente, muitas famílias destruídas, e, se isso continuar, pode se transformar em algo muito maior e muito pior. Eu conheço bem Vladimir [Putin]. Este é o momento dele de agir. A China pode ajudar. O mundo está esperando!”, finalizou.
Trump prometeu acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas se fosse eleito presidente, mas não está claro se Putin está pronto para falar de paz após os recentes avanços no campo de batalha.
No mínimo, ele fará uma negociação difícil, o que gera preocupação de que Trump force a Ucrânia a aceitar um acordo que entregue à Rússia o território anexado durante a invasão — algo que poderia ser visto como uma “recompensa” à agressão de Putin.
Os críticos do presidente eleito dos Estados Unidos temem que ele também se oponha a quaisquer garantias de segurança para a Ucrânia e frustre suas esperanças de aderir à Otan e à União Europeia para apaziguar Putin.
Um acordo do tipo pode parar a matança no curto prazo, mas a história do presidente russo sugere que ele provavelmente usaria isso para se rearmar e se reagrupar para um novo ataque com o objetivo de varrer a Ucrânia do mapa.
H.R. McMaster, um dos ex-assessores de Segurança Nacional de Trump, pediu ao seu antigo chefe no domingo que trate o Irã, a Rússia, a China e a Coreia do Norte como diferentes partes do mesmo desafio.
“Algumas pessoas acham que você deve tentar separá-los. Acho que deveríamos colá-los porque sempre que agimos como se estivessem separados, eles se protegem e agem como se não estivessem operando juntos”, pontuou McMaster no programa “Fox News Sunday”.
Isso, no entanto, iria contra o desejo de Trump de intermediar acordos individuais com ditadores estrangeiros e jogar adversários uns contra os outros.
Ainda assim, os eventos do fim de semana na Síria são um lembrete da velocidade da mudança política global em um momento de alianças mutáveis, crescentes desafios para os Estados Unidos e a maneira como até mesmo os limites traçados por Trump sobre o uso do poder americano no exterior serão desafiados.
“Acho que o presidente eleito está certo em dizer que os Estados Unidos, no momento, devem sentar e ver como isso se desenrola”, disse Uriel Epshtein, CEO da Renew Democracy Initiative, à CNN.
“Eu também gostaria de destacar que este é realmente um momento importante no qual podemos ver como não se pode olhar para os conflitos individualmente, como é preciso olhar para o mundo globalmente, porque a queda de Assad em Damasco atravessa Jerusalém e Kiev”, concluiu.