Para a maioria da população brasileira, um dos maiores desafios da vida adulta é estar em dia com os boletos. Não é para menos, se analisarmos os dados do Serasa, vemos que em fevereiro o número de inadimplentes no país subiu e alcançou 75 milhões de pessoas.
Mas essa é uma realidade bem distante dos investigados pela Polícia Federal na Ultima Ratio, a operação que revelou um esquema de compra e venda de sentenças no mais alto escalão do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).
Desde outubro do ano passado, você tem lido (ou assistido) diversas matérias sobre a operação. Nessa semana, ela voltou aos holofotes porque quatro desembargadores do TJMS e um conselheiro do TCE-MS (Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul) tiveram o afastamento dos cargos públicos renovado pelo ministro Cristiano Zanin, do STF (Supremo Tribunal Federal).
Junto com essa decisão, novos detalhes da investigação feita pela Polícia Federal de Mato Grosso do Sul vieram à tona, tudo fruto das apreensões realizadas no ano passado, quando os investigados foram, pela primeira vez, alvos de busca e apreensão.
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Entre conversas analisadas e processos supostamente comprados, um fato listado nesse novo relatório de investigação chamou a atenção dessa jornalista que vos escreve: a saga de uma advogada para pagar um boleto de R$ 213 mil.
A advogada em questão é Renata Pimentel, filha do desembargador Sideni Soncini Pimentel, um dos sete integrantes do Judiciário acusados de vender decisões.
Segundo a Polícia Federal, Renata era a responsável por intermediar o esquema. Era com ela que outros advogados negociavam, em nome dos seus clientes, a compra de sentenças assinadas pelo desembargador Sideni e pelos seus colegas.
Era ela também que recebia o dinheiro fruto das negociações ilícitas e repassava ao pai e a outros envolvidos. Para comprovar isso, a Polícia Federal narrou, detalhadamente, a negociação de processo envolvendo a alienação de uma fazenda avaliada em R$ 20 milhões.
Renata não atuou no processo, mas tinha um grupo no WhatsApp com os advogados de ambas as partes envolvidas e recebeu em sua conta R$ 920 mil, valor que, segundo a polícia, foi pela “venda das decisões a serem proferidas” por seu pai e outros dois desembargadores, Júlio Cardoso (já aposentado) e Vladimir Abreu (que também está afastado do cargo).
Para pagar o pai de “forma lícita”, Renata financiou para ele uma caminhonete, modelo 2022, avaliada em mais de R$ 200 mil.
Nas trocas de mensagem encontradas no celular de Renata, a polícia constatou que esse era um método comum entre os investigados e, mais que isso, encontrou indícios da tentativa de pagar esses financiamentos de forma antecipada e em dinheiro vivo.
Aqui entramos nas provas que citei no início do texto.
Em uma conversa com a gerente do seu banco, a advogada pede ajuda para quitar um financiamento, no valor de R$ 213 mil, em dinheiro. Por áudio, a bancária explica que isso não é possível devido a uma norma do Banco Central e a Renata reforça que “não pode” depositar o valor em sua própria conta.
“Re, não tem como, eu acho que seu contador sabe disso. Não vai ter como, entendeu? É norma do Banco Central, se você for no Bradesco, no Itaú, no Sicredi, na Caixa Econômica, no Banco do Brasil ou qualquer banco que você for … hoje não faz mais TED na boca do caixa que nós chamamos. E você não paga nenhum boleto em espécie acima de R$ 10 mil. Então, qualquer cliente que chega aqui com um boleto de dez mil e cem reais vai ter que depositar na conta dele. Ele vai ter que pagar por débito em conta. Ele vem em dinheiro, deposita na conta e paga em débito, porque o Banco Central não autoriza mais fazer pagamentos de boletos acima de dez mil em espécie”.
Trecho transcrito pela Polícia Federal
Sem saber o que fazer, a advogada recorreu ao contador; ele orienta que ela deposite o dinheiro, pague o boleto e justifique o valor como “empréstimo do sócio para a empresa”.
E assim é feito. Em poucos minutos, o valor cheio – R$ 213 mil – é depositado em conta e o financiamento de um SW4 é quitado de uma única vez.
Na conversa entre Renata e a gerente do banco, um outro ponto chama bastante atenção. Depois de toda a explicação de que os boletos acima de R$ 10 mil não podem ser pagos em dinheiro vivo, a mulher ainda acrescenta: “inclusive aqui no Tribunal tenho muito problema, porque vem muita gente com dinheiro em espécie pra pagar boleto e a gente não pode”.
Aparentemente, a realidade de funcionários do Judiciário é bem diferente da maioria dos brasileiros.
O que dizem os investigados
- Renata Pimentel: “Todas as operações financeiras constantes do relatório da Autoridade Policial estão de acordo com o livre exercício legal da advocacia e demais atividades empresariais que atua. E estão sendo objetos de ampla perícia financeira e fiscal para afastar quaisquer dúvidas”
- Sideni Soncini Pimentel: “O Desembargador Sideni nunca atuou em casos em que seus filhos fossem advogados. Todas as suas decisões foram fundamentadas, jamais recebeu qualquer vantagem indevida no exercício da jurisdição. A defesa apresentou um extenso parecer técnico contábil no qual aponta a origem de todas as receitas do desembargador, todas explicadas e lícitas. O desembargador prestou depoimento na Polícia Federal e esclareceu todos os fatos, não havendo motivo para continuidade de seu afastamento”, informou o advogado Pierpaolo Bottini.
(Colaborou com a coluna, Loraine França)