O número de 434 mortos e desaparecidos políticos, divulgado pela CNV (Comissão Nacional da Verdade), revela a dimensão da violência da ditadura militar no Brasil. Dentre esses pessoas está o padre João Bosco Burnier, assassinado em 1976, em uma delegacia localizada em Ribeirão Bonito, onde hoje fica o município de Ribeirão Cascalheira, a 893 km de Cuiabá.
O padre João Burnier foi morto a tiros pelos próprios policiais, enquanto defendia mulheres que estavam sendo torturadas no local. Contudo, a morte só foi reconhecida como crime político em 2009, com 33 anos de atraso.
De acordo com o doutor em história, Vitale Joanoni Neto, a morte do padre é considerada um crime político por ter acontecido em um país sob regime ditatorial. Além disso, o Estado Brasileito investia em agências para promover a integração da Amazônia ao território nacional.
“O crime acontece no contexto em que o Estado está dando toda a autoridade para que essas empresas entrem e se estabeleçam à revelia da ocupação original, como povos originários, posseiros ou quilombolas. Assim, o Estado está delegando o seu poder para que empresas privadas se estabeleçam neste lugar e cometendo vários tipos de arbitrariedades. Inclusive a própria execução”, explica o historiador.
Atuação de João Bosco
João Bosco Burnier era um padre jesuíta, que na década de 70 atuava como coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), junto aos índios das etnias Beiços-de-pau, Bakairi, Merure e Bororo, ao norte de Mato Grosso.
À época o conflito agrário, disputa por terras, na região do Araguaia que se estendia por Mato Grosso e Pará era marcada por violências, isso foi um dos principais motores que culminaram no assassinato do padre.
Segundo o historiador, a região do Araguaia era marcada por uma disputa acirrada pela terra, que opunha grandes empresas e posseiros.
“Desde os anos 30 e 40, havia moradores e posseiros estabelecidos na região. No entanto, a partir dos anos 60, grandes empresas começaram a adquirir extensas áreas de terra do Estado de Mato Grosso, desconsiderando a presença desses antigos ocupantes”, explica.
A justificativa utilizada pelo Estado e pelas empresas era a de garantir o “progresso” e o “desenvolvimento” da região. No entanto, essa visão de desenvolvimento excluía os pequenos agricultores, que eram vistos como um obstáculo ao avanço do agronegócio.
“De fato os posseiros não tinham um documento, mas já estavam lá. Inclusive, pela legislação eles teriam direito, mas o estado nessa região estava lá para garantir progresso e o desenvolvimento e essas pessoas não eram vistas como capazes de fazer isso”.
Contexto da morte
Em 11 de outubro de 1976, acompanhando o bispo Dom Pedro Casaldáliga, o padre foi à delegacia de Ribeirão Bonito, em defesa de três mulheres que estavam sendo torturadas, após serem presas.
Apesar de não haver um mandado judicial, Margarida Barbosa da Silva, Yolanda Eloisa dos Santos, Santana Rodrigues de Oliveira Santos e José Pereira de Andrade, foram encarceradas em flagrante delito.
O historiador explica que essas mulheres foram levadas a delegacia, após um fazendeiro ter sofrido retaliação. A polícia, que atuava ao lado dessa categoria, começou a prender e torturar pessoas, na tentativa de encontrar o autor das ameaças.
“A pessoa que cometeu esse esse revide fugiu. Então, os moradores sabem onde essa pessoa está escondida, levam comida para essa pessoa. E a polícia quer encontrar, então ela prende essas pessoas para que digam aonde está escondida. As pessoas presas estavam sendo torturadas para contar. Este é o contexto que o Padre João Bosco e Bispo Dom Pedro vão na delegacia”, relata Neto.
Durante uma discussão, João Bosco foi alvejado com dois tiros na cabeça, pelo soldado Ezy Ramalho Feitosa. Ferido, o religioso foi internado no Instituto Neurológico de Goiânia (GO), mas não resistiu e faleceu aos 59 anos, no dia 12 de outubro, do mesmo ano.
O corpo de Burnier foi enterrado no cemitério dos Jesuítas, em Diamantino (GO).
Hoje, o padre está eternizado no Memorial da Resistência, pela sua luta no movimento indígena. O reconhecimento da morte de Burnier como um crime político é o Estado pedindo desculpa pelo erro.
“É reconhecer que este crime não foi responsabilidade da vítima, pois ela é vítima é do Estado. Isso tira um peso das costas da família. Tira aquela aquele manto de de impunidade que pesava sobre os agentes que fizeram isso”, conclui Vitale.