A frase de uma seguidora (ou hater?) no tiktok me chamou a atenção essa semana. “O povo escolhe marido errado” disse ela. Por coincidência, a mulher que fez esse comentário se chama Gisele. O mesmo nome da francesa que ganhou as manchetes por revelar a atrocidade que o próprio marido fez com ela.
Gisèle Pellicot chocou o mundo contando que foi estuprada dentro de sua casa, em abusos orquestrados pelo homem com quem viveu por 50 anos. Aí eu pergunto para a Gisele do tiktok: será mesmo que é o povo que escolhe marido errado?
O caso da francesa descortina uma questão delicada que a sociedade ainda finge que não vê: o estupro marital.
Mulheres são submetidas a muitas coisas que não desejam e são forçadas, porque tudo vem no pacote do casamento. A obrigação de “servir” o marido na cama lhes força a negligenciar sua própria recusa, porque se não atenderem serão traídas – e não raro, serão traídas do mesmo jeito. Quantas esposas foram forcadas a terem relações sexuais estando doentes, cansadas, sonolentas, machucadas ou simplesmente quando não queriam? Mas aqui, temos somado a isso o absurdo da lascívia, a satisfação pessoal acima da dignidade alheia que move incontáveis estupradores pelo mundo. É esse “detalhe” que impede sua filha de voltar a pé da academia, ou que apavora sua neta ao cruzar uma rua deserta voltando da escola ao meio-dia.
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Haters, muito obrigada!
Lembra daquele título “Dormindo com o inimigo”? Ouvi essa frase de uma delegada da mulher, como o resumo de todos os casos que chegavam às suas mãos. Mulheres dividindo o leito com um homem que comete abusos físicos e verbais, e permanecendo nessas relações porque o casamento normaliza isso. Esposas carregam a obrigação de “atender” e nesse caminho, esquecem de observar. Somos doutrinadas a confiar no homem com quem escolhemos passar o resto da vida, e justo por isso, não cogitamos que ele seja um criminoso.
Me dá ânsia de vômito pensar em uma mulher acordando por 50 anos se sentindo estranha, por vezes machucada, tratando infecções sexualmente transmissíveis sem saber como as contraiu, e seu marido, seu suposto melhor amigo, que jurou protegê-la e respeitá-la operar tudo isso e submeter essa mulher ao absurdo. Se você acha que esse roteiro é coisa rara, é porque não conhece a realidade das delegacias da mulher no seu próprio país. Lá existem inúmeros registros parecidos.
E claro, ela não foi a única. Ele guardava fotos da sua filha nua. A moça também desconfia que tenha sido drogada e abusada, assim como a mãe.
Agora, de tudo isso, preciso ressaltar o ponto mais desconfortável para você, caro leitor. Desses 50 homens que estupraram uma mulher sedada, NENHUM foi capaz de achar errado? Nenhum foi à delegacia? Todos, absolutamente todos foram coniventes.
Gisèle Pellicot poderia estar sendo abusada até hoje, se seu abusador não tivesse caído na armadilha da própria estupidez. Ele só foi descoberto porque foi flagrado filmando embaixo das saias de 3 mulheres em um supermercado.
A francesa Gisèle optou por não ter um julgamento anônimo, e assim, alertar outras mulheres pelo mundo. Heroína, de fato. O marido, admitiu tudo. Infelizmente, a foto que vemos nos noticiários é a dela, não a dele. Quem ganha notoriedade ainda é a vítima e não o criminoso.
Marido não vem com etiqueta de aprovação do Inmetro, não é um item que se escolha na prateleira pelas virtudes. Escolher bem não é o bastante para você estar segura. Pessoas mentem, pessoas têm facetas, têm esqueletos no armário.
Infelizmente, uma mulher precisa estar sempre vigilante, por si e por suas filhas e netas. Enquanto 50 homens silenciarem sobre o estupro de uma mulher em seu próprio leito marital, o mundo seguirá sendo um lugar perigoso demais para que as mulheres possam dormir em paz.