No dia 29 de novembro de 2022, em vez de trabalhar, um mestre de obras de quase 60 anos saiu de casa a caminho da delegacia em Campo Grande. Faria algo doloroso para qualquer pai: denunciar a filha por estelionato.
Ele havia descoberto, meses antes, antecipação de saque-aniversário de quase R$ 25 mil da conta de FGTS, feito por meio eletrônico, sem sua anuência. Além de perder o dinheiro, o mestre de obras ficou com a conta de FGTS bloqueada. Mesmo se fosse dispensado sem justa causa, não poderia mais movimentar o saldo.
Só descobriu o golpe seis meses depois do empréstimo, feito em dezembro de 2021.
Soube ao tentar sacar valores e ser informado de que alguém tinha raspado o possível. Procurou a Polícia Federal, que repassou o caso à Polícia Civil.
O celular e o endereço de e-mail cadastrados para a operação de empréstimo virtual eram os da moça sob suspeita, apontou a investigação policial. Apesar disso, o inquérito foi arquivado, sem qualquer punição, por falta de provas. Ela ficou livre, com a ficha limpa, constatou a Capivara Criminal.
Neste ano, em março, passados quase três anos da situação, a filha disse à polícia ter sido assaltada ao visitar o pai. O ladrão, relatou no boletim de ocorrência, estava de motocicleta e teria levado o celular e cartões pessoais, sob ameaça.
Crime inventado
Lá foi a equipe policial tentar descobrir quem cometeu o roubo. Ao invés disso, o inquérito da Derf (Delegacia Especializada de Repressão a Roubos e Furtos) terminou desvendando incongruências em sequência.
Por exemplo: uma hora depois do suposto assalto, a autodeclarada vítima estava em casa, no bairro Tiradentes, recebendo comida do entregador do Ifood.
O apartamento era 15 km distante do local informado como o do roubo, a rua Ana Jacinta de Oliveira, no Jardim Centro-Oeste, conforme identificaram os agentes de segurança pública. A conta não fechava.
Da companheira do pai da denunciante, veio um depoimento ainda mais esclarecedor das inconsistências – entenda-se mentiras – sobre o alegado roubo do aparelho telefônico.
Segundo a madrasta, desde o episódio do golpe com o dinheiro do FGTS, a relação entre pai e filha foi rompida. Fazia mais de dois anos.
O casal não mantinha contato com ela, muito menos a viu no dia no qual disse ter sido vítima de ladrão na frente da residência deles. Os vizinhos também não perceberam nenhum movimento anormal.
Por fim, as operadoras de telefonia contratadas pela moça informaram à Derf o uso duas linhas sem problemas. Havia rastro inclusive de utilização do aplicativo WhattsApp no dia seguinte ao que ela disse ter ficado sem celular.
Ao fim do inquérito, de vítima passou a ser investigada. É alvo de denúncia por falsa comunicação de crime, por ter mobilizado uma investigação pública de algo inexistente. A lei prevê detenção de um a seis meses, ou multa.
Bem, a essa altura, o caro leitor deve estar se perguntando por que alguém inventaria um assalto. Boa coisa não é.
Não era. No caso em questão, a mentira tem a ver com outra denúncia de crime feita pela mulher, igualmente sem fundamento, conforme o entendimento da polícia.
Crime inventado, de novo
Em fevereiro deste ano, a filha acusada pelo pai de estelionato, agora servidora pública comissionada, denunciou o chefe, um delegado de Polícia Civi, à Deam (Delegacia de Atendimento à Mulher). Garantiu ter sido assediada sexualmente, de forma rotineira.
Mais uma vez, as forças de segurança tiveram de movimentar recursos públicos para, no final, descobrir outra inverdade.
Acusação grave
Se o crime fosse real, o delegado poderia ser penalizado com até dois anos de reclusão. A punição, normalmente convertida em pena alternativa, nem seria o pior.
Trata-se de acusação grave o suficiente para imprimir pecha negativa na carreira, principalmente se for detentor de cargo público.
Embora ainda não estejamos relatado ao Judiciário, o inquérito da Deam caminha para o fim. A investigação jornalística da Capivara Criminal indica que, igual ao do roubo inexistente do celular, tende a se transformar em novo indiciamento da servidora por falsa comunicação de crime.
De seu lado, o delegado apontado como assediador registrou boletim de ocorrência por denunciação caluniosa. Para esse ilícito, a reprimenda prevista em lei chega até oito anos de reclusão. A peça investigativa está em andamento.
Cabe, ainda, ação na área cível, ação por danos morais, pois mesmo com a apuração correndo sob sigilo, o nome do denunciado sofreu abalo entre quem o conhece e quem teve acesso aos dados.
Só piora!
Como num livro de detetive daqueles nos quais a trama só vai se complicando, você vai entender porque o falso roubo está diretamente ligado ao assédio não comprovado. E qual o pano de fundo.
No dia 5 de março de 2024, estava marcado depoimento da então assediada na Deam, nas dependências da Casa da Mulher Brasileira, no Jardim Imá. No dia 4, ela prestou queixa do roubo.
Durante mais de uma hora de oitiva, a servidora comissionada alegou não ter como demonstrar as conversas comprometedoras com o chefe porque tinha sido vítima de assalto e ficado sem celular. Falou isso em meio a riso.
Veja abaixo:
Quem é ela?
O rosto e a voz do vídeo acima são de Yasmim Osório Cabral, 31 anos, de quem esta edição da Capivara Criminal está falando o tempo todo.
Desde o dia 8 de julho de 2024, Yasmim ocupa cela do presídio Irmã Irma Zorzi, em Campo Grande. A ordem de prisão preventiva foi no contexto da operação “4º Eixo”, do Dracco (Departamento de Repressão ao Crime Organizado), para combater fraudes no Detran/MS (Departamento de Trânsito de Mato Grosso do Sul).
Yasmim é lotada na Corregedoria de Trânsito, justamente o órgão responsável por combater irregularidades no Detran.
De acordo com a investigação do Dracco, a servidora participa de esquema para regularizar, de forma criminosa, a documentação de veículos pesados no sistema do órgão de trânsito, em conluio com um despachante e mais dois homens.
A participação dela foi descoberta em fevereiro de 2024, poucos dias antes de ir à polícia afirmar que era vítima de assédio por parte do chefe.
O delegado, cujo nome será preservado, foi procurado pela Capivara Criminal, e não se manifestou. Com as mudanças no comando da Polícia Civil deste ano, ele foi transferido de lotação.
Quando procurou a Deam, Yasmim Osório Cabral tinha advogado constituído, que inclusive a acompanhou no depoimento. Ele não a representa mais. A reportagem não conseguiu localizar a defesa atual.
Os procedimentos envolvendo Yasmim correm de forma sigilosa.
Mesmo presa e sob suspeita de corrupção, ela segue como servidora comissionada do Detran. É alvo de procedimento administrativo e está suspensa por seis meses, sem receber o salário, de pouco mais de R$ 2 mil.
O vínculo é mantido, apurou a Capivara Criminal, para que a sindicância seja concluída. Se houver a exoneração, a investigação administrativa se encerra automaticamente, sem possibilidade de aplicação de pena.
Entre as consequências de uma punição administrativa é o impedimento de nomeação cargo público sem concurso.
Doença ou índole?
Existe na psiquiatria uma doença chamada “mitomania”, de gente que mente patologicamente. Se não for esse o caso de Yasmin, pode ser apenas índole voltada ao crime, se as conclusões policiais se mostrarem retrato verídico.
Fica a dúvida, diante da capacidade negativa atribuída a Yasmim,, de enganar o próprio pai por dinheiro, ludibriar a polícia e de usar uma causa legítima, a das mulheres vítimas de assédio sexual, para se beneficiar, sem se incomodar com o fornecimento de adubo para discursos misóginos e machistas.